Nestes anos temos vivido momentos extraordinários. Um deles, que recordamos hoje, foi o espetáculo de Contos Ubuntu, no Ubuntu Fest em Coimbra, em 2021, com François Vallaeys que, como sempre, nos reabre portas e janelas.
Provavelmente desde que nos encontramos como humanos, contamos histórias. Ainda não tínhamos palavras e já nos desenhávamos. Ainda não sabíamos escrever e já nos descrevíamos. Por isso, ser humano é, também, uma arte de contar e acolher histórias. De as ouvir atentamente, de as olhar com deslumbre ou de as sentir com deleite. Em certa medida, somos gerados pelas histórias que nos habitam. Criador e criatura trocam de pele, nunca sabendo onde acaba um e começa outro. Produzimos histórias e as histórias produzem-nos.
Fruto da imaginação ou da memória, verdadeiras ou nem por isso, fomos então forjando e entrelaçando narrativas que captavam a atenção e abriam sorrisos. Sobre tudo e sobre pequenos nadas, encadeamos ideias e acendemos fogueiras. Dentro de nós e para nos reunir à sua volta. Talvez por isso, como Galeano contava no seu Livro dos Abraços, vistos do céu, somos um “mar de fueguitos”, de todos os tamanhos e intensidades. Brilhamos uns para os outros, também através do que contamos. Por isso, contar é sempre uma relação, o que fundamenta a centralidade das historias na filosofia Ubuntu.
A arte de contar acolhe todos os mitos fundadores e sustenta os símbolos que nos inspiram. Gera um poder que ora encanta poderosos, ora os atemoriza sem dó. É certo que as palavras só conseguem contar parte. As imagens e os sons, os gestos e os silêncios, vão muito para além delas. Mas que ninguém despreze o poder da palavra contada. Ela levanta multidões e desperta utopias. Faz antever mundos (im)possíveis e alimenta o movimento perpétuo de busca de sabedoria.
Esta coleção de contos a que François Vallaeys dá vida neste espetáculo (reunidos também no Livro “Contos Ubuntu”) é, na verdade, uma preciosidade. De múltiplas fontes culturais, estes contos foram escolhidos, adaptados e contados com inigualável arte e engenho. Esta escolha não foi inocente, nem ocasional. Podia ser outra, claro. Mas esta reflete o olhar do contador e a sua arte para nos desenhar caminhos.
Os contos escolhidos refletem desde a fina ironia ao humor cáustico; da ternura suave à inquietação desconcertante. Alinhados com os pilares do método Ubuntu – autoconhecimento, autoconfiança, resiliência, empatia e serviço – servem, no entanto, mais para lançar perguntas do que para fechar respostas. Prestam-se a interpretações várias. Não se obrigam a uma só “moral da história”. São janelas por onde sair, ao invés de molduras para nos limitar. Acima de tudo, dão-nos ar e asas para voar. E, se assim é, espera-se que possam ser ferramenta e combustível. Que com eles cada um are o solo de sua consciência e coloque em marcha o motor da sua vontade.
Os contos falam-nos também do contador. É ele que lhes dá vida e os retira da penumbra. Neste caso, mostram-nos alguém muito especial. François Vallaeys é mestre nas pontes que faz entre a sua paixão pela filosofia e a sua arte de contar. Sempre à margem do “academicamente correto”, liga a erudição académica com o compromisso social, através do ensino da responsabilidade social universitária, mas salta, sem medo, para o palco dos contos e do contar. Explora, com perícia e competência, essa ousadia cultural que não o atemoriza. François é, acima de tudo, um ser livre. De uma profundidade que nunca abdica, mostra-se como é: provocador, culto, inteligente, desconcertante. É possível amá-lo ou detestá-lo. Impossível é ser-lhe indiferente. Nós, claro, percebe-se bem qual foi a nossa opção.
(texto adaptado da introdução ao livro “Contos Ubuntu”, que contou também com as ilustrações de Marta Marques)
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