“Eram pr´aí uns 500!”
“Hoje um facto é verdadeiro não porque obedece a critérios objectivos, rigorosos e comprovados na fonte, mas simplesmente porque outros media repetem as mesmas informações e «confirmam» ... A repetição substitui-se à verificação. Se a televisão (a partir de um despacho ou de uma imagem de agência) apresenta uma notícia e em seguida a imprensa escrita e a rádio a retomam, tal basta para creditá-la como verdadeira”.[i]
[i] Ramonet, 1999: 135
Em Dezembro de 1989, em plena convulsão do leste europeu, correram mundo as imagens de valas comuns descobertas em Timisoara que testemunhariam os massacres aí ocorridos, nos dias de levantamento da Roménia contra o ditador Ceaucescu. Falava-se de cerca de 4.000 mortos nesta cidade, num total de 70.000 em todo o país, em poucos dias de revolta. Tais imagens tiveram uma repercussão extraordinária nas opiniões públicas mundiais e respectivos governos. A pressão sobre Ceaucescu subiu a tal ponto que o fez cair. Julgado sumariamente, foi condenado com a sua mulher a execução imediata. O mundo rejubilou. A Roménia era livre. Poucos comentaram o facto de, mais tarde, se ter descoberto que as referidas imagens de valas eram falsas e não correspondiam a massacrados de Timisoara. Foi uma das maiores fraudes mediáticas já registadas.
Em 1999, em pleno Referendo timorense, sucediam-se as notícias trágicas de “mortes” de figuras relevantes da sociedade timorense - desde o pai de Xanana Gusmão, à Irmã Margarida ou o Padre Domingos Soares; anunciou-se também o desaparecimento de D. Basílio do Nascimento - com enorme impacto na opinião pública internacional. Mais tarde, veio a confirmar-se que não correspondiam à verdade.
Estes dois exemplos servem para recordar erros jornalísticos ao universo mediático e à opinião pública e deveriam consolidar aprendizagens a não esquecer facilmente. Nem sempre o que os media nos dizem é verdade.
Salvaguardando as devidas distâncias, os acontecimentos de Carcavelos podem vir a inscrever-se neste histórico de erros jornalísticos relevantes. Nesses acontecimentos, foi factor central de potencial de noticiabilidade, a dimensão ímpar a nível nacional, europeu e mesmo mundial, de um assalto em massa, - o dito “arrastão” – protagonizado, segundo as notícias, por 500 jovens, organizados para tal. Espantosamente ninguém questionou, um segundo que fosse, a credibilidade desse número avançado pelas primeiras notícias. A construção do lead, a repetição dos destaques em rodapé nas televisões, a assunção a-crítica deste suposto facto - porque “vi na televisão” - consolidou definitivamente este “facto”.
Como bem sublinha Ramonet, na sua Tirania da Comunicação, “a repetição substitui a verificação”. Um pega, outro repete e o terceiro acredita. O rigor, a objectividade, o cruzamento de várias fontes, bem como o simples bom-senso e a perspicácia deveriam, no mínimo, levar-nos a questionar se é consistente e credível a informação de que se tratou de uma operação organizada por 500 (!) jovens. Ninguém pareceu incomodar-se com essa preocupação da procura aprofundada da verdade. Perguntas como “com 500 assaltantes no terreno só foram feitas 4 detenções?”, “com 500 assaltantes à solta na praia não se registaram feridos, a não ser os dois resultantes da intervenção da polícia?” “como é que se organiza um gang de 500 pessoas para um assalto?”, não constaram, aparentemente, do raciocínio jornalístico. Ao invés, o espaço ao boato ou ao rumor teve tempo de antena, protagonizado pela vox populi.
A adesão aos contornos extraordinários da notícia, ainda que inconsistentes, atraiu tanto jornalistas, quanto espectadores. Todos quiseram acreditar. Provavelmente, foi suficiente alguém – polícia, mirone ou comentador de oportunidade - dizer “eram pr´aí uns 500”, para que não mais a notícia descolasse deste número extraordinário, sem que este “facto” fosse colocado em questão. A gestão da informação veiculada pelas fontes é conhecida por todos e deve ser cuidadosa e enquadrada no seu registo de interesses próprios, não sendo expectável que se limitem a ser “objectivas” pois, normalmente, são parte interessada e activa no processo em causa, procurando gerir as notícias. Outras vezes, são tomadas como fontes fidedignas, vozes passantes, que aplicam um conjunto de filtros – preconceitos, erros de comunicação, excesso de protagonismo pessoal – ao facto concreto que descrevem e assim o alteram radicalmente. É a institucionalização do “diz que disse”.
Este aparente preciosismo – “ok, não são 500, são 50. Mas o problema é o mesmo” – pode parecer irrelevante face à gravidade do acontecimento. Ninguém coloca em causa que os actos ilícitos têm que ser punidos, na aplicação serena, isenta e equilibrada da justiça, olhando aos factos concretos e não ao ruído mediático. Mas não é isso que está, neste contexto, em discussão. Os acontecimentos de Carcavelos não teriam sido agendados e percepcionados da forma que o foram – topo de noticiários com longas coberturas, bem como primeiras páginas de jornais - se não tivessem estes contornos de “caso único no mundo”, que até televisões e jornais estrangeiros noticiaram. A expansão automática de um sentimento de insegurança, que levou os portugueses a evitarem a praia nos dias seguintes, só aconteceu graças à difusão mediática deste super-acontecimento, do qual todos falam e ninguém duvida. Mas que, provavelmente, não aconteceu da forma como é descrito.
Se o número avançado fosse de duas ou três dezenas de protagonistas activos nessa assalto, como parece indiciar uma análise mais cuidada das fotografias disponíveis do momento do assalto e como foi agora confirmado pela Polícia, a notícia não teria tido um décimo do impacto, nem causado as ondas de choque que se sucederam nos dias seguintes, até com miragens de novos “arrastões” em vários pontos do país. Este dimensionamento deu-lhe um estatuto inusitado, catapultando-a para um nível de agendamento mediático, público e político elevadíssimo.
Deste agendamento resultaram consequências que já são inapagáveis. Estigmas que aumentaram, insegurança difusa que se disseminou, preconceitos que se consolidaram.. De nada servirá a eventual verificação à posteriori do erro jornalístico, a não ser aprender para o futuro. A responsabilidade social e a cultura ética e deontológica dos jornalistas assim o exigem.
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